A narrativa que se segue não é um mito e nem história de pescador. É sobre um caso real que aconteceu no Manchester City e que nesse ano de 2019 virou filme.
Muitos já ouviram falar do mítico goleiro do City que quebrou o pescoço em campo e seguiu jogando, foi campeão e só descobriu que havia sofrido a lesão dias depois. O que poucos conhecem, porém, é a sua história, tão mítica quanto sua conquista da FA Cup de 1956.
Bert Trautmann, o vilão e herói, não foi qualquer um. De sua infância na Juventude Hitlerista a herói de Wembley, o ex prisioneiro de guerra e primeiro goleiro a receber o prêmio de melhor futebolista do ano foi uma dessas pessoas que não apenas vivem, mas marcam a história.
Nascido em 1923, em uma Alemanha entre guerras, cresceu em Bremen ao lado dos pais e do irmão mais novo. Desde pequeno, já dava sinais de que levava jeito para o esporte.
Acompanhava o pai em jogos de futebol, esporte do qual se tornou um fã ativo. Também tinha gosto pelo handebol. O esporte foi sua vida, mas Bert precisaria da ajuda do destino para seguir esse caminho. Ainda menino, foi obrigado a ligar-se à Juventude Hitlerista, após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, fato que o afastou dos caminhos do esporte. Apesar disso, ele sobressaia em eventos atléticos entre os meninos, tendo grande desempenho em atividades envolvendo saltos e arremessos.
Aos 17 anos, um ano após o estouro da segunda guerra, se voluntariou à Luftwaffe (Força Aérea Alemã) e passou três anos em guerra na Rússia, primeiro como Operador de Radiotransmissor e depois como Paraquedista. Foi um duro período de sua vida. O frio do inverno do leste lhe causou congelamentos nos pés e ele presenciou o chocante massacre de judeus por um pelotão de fuzilamento, chegando a pensar até em suicídio naquele momento.

Apesar dos milhares de mortos, conseguiu sobreviver. Sua sorte finalmente lhe sorriu em abril de 1945, quando foi capturado por soldados britânicos e levado para a Inglaterra, onde foi transferido para um campo de prisioneiros de guerra em Marbury Hall, Cheshire.
Posteriormente, foi interrogado. Os oficiais buscavam avaliar o nível de crença daqueles homens em relação ao nazismo. Decidiram que ele e muitos outros não estavam prontos para retornar à Alemanha e junto aos outros alemães capturados, foram reeducados com lições sobre liberdade e democracia.
O segundo grande fato que mudou o rumo de sua vida foi sua transferência para o chamado POW (Prisoners of War) Camp 50, outro campo de prisioneiros de guerra, onde trabalhou na extração de carvão, e, pela primeira vez em muito tempo, teve mais liberdade e foi bem tratado.
Lá, em 1946, havia um guarda escocês que era fanático por futebol e organizou uma partida entre times de prisioneiros. Foi um sucesso. Logo, outros times locais viriam se juntar ao evento, e, em pouco tempo, duas mil pessoas já se juntavam para acompanhar os alemães jogarem. No começo, Bert jogava de primeiro volante, mas, depois de uma lesão do goleiro do seu time, trocou de posição e nunca mais deixou as traves.
Pouco tempo depois, Bert assinou contrato com o clube St. Helens Town, clube de futebol amador. Seu sucesso foi imediato. Logo, tornou-se a estrela do time. Tinha um grande fã-clube feminino e encantava os torcedores com sua habilidade em campo. Esse fator chamou a atenção de olheiros de grandes clubes do país, que acompanhavam os jogos do time.
Não demorou muito até que clubes como Doncaster Rovers, Bolton Wanderers, Wrexham e Burnley demonstrassem interesse em contratá-lo. No entanto, em outubro de 1949, Trautmann decidiu assinar contrato com um clube de primeira divisão do país, o Manchester City.
A princípio, houve uma grande onda de revolta entre uma parte da torcida do clube, principalmente daqueles vindos da comunidade judaica. Os torcedores estavam furiosos, cartas de reclamação estampavam os jornais locais e milhares de fãs tomavam o Maine Road e as ruas da cidade, em protesto à contratação de um jogador alemão que parecia representar tudo o que eles desprezavam e temiam em relação à Alemanha da época.
Mesmo assim, Bert viajou para se juntar à equipe. Alguns de seus companheiros de clube haviam enfrentado os alemães nas praias da Normandia, o famoso “dia D”. Apesar de tudo, foi bem recebido pelo grupo.
Você poderia imaginar algo que possa ter unido ingleses e um alemão alguns anos depois de estarem em guerra? O futebol é capaz de tudo.
A única rejeição que sofria seguia vindo das arquibancadas do Maine Road. Mas isso logo mudaria. Nas primeiras semanas, mostrou suas habilidades inquestionáveis debaixo das traves, sua reputação cresceu e ele conquistou pouco a pouco os torcedores do City.

A mudança foi tamanha que todo garoto de Manchester queria ser Bert nas peladas de rua, ainda que alguns pais ainda ficassem reticentes em aceitar o fato de seus filhos terem um alemão como herói e ídolo em quem se espelhar.
Em janeiro de 1950, jogou sua primeira partida em Londres, contra o Fulham. A cidade havia sido implacavelmente bombardeada durante a guerra, e Bert esperava uma recepção hostil dos torcedores e da imprensa. Sua apresentação foi fantástica naquele dia, e o goleiro foi aplaudido ao fim da partida, não somente pelos torcedores do City, como também pelos torcedores adversários. O time perdeu por 1 a 0, mas a imprensa da época avaliou que podia ter sido 6 a 0, não fosse a atuação do goleiro. Dali para a frente, ele se tornou realmente um herói.
Como nem tudo são flores e nenhum herói vive só de glórias, sua primeira temporada no City culminou com um rebaixamento. Typical City.
Mas, ao final da temporada de 1951, o clube regressou à primeira divisão, muito por causa do goleiro. Bert não tinha medo de se atirar em divididas e colocava seu corpo em risco em todas elas. Naquela temporada, suas grandes atuações apareceram em vídeo pela primeira vez, quando câmeras filmaram o jogo contra o Newcastle.
Apesar da derrota, Bert fez brilhantes defesas, inclusive de dois pênaltis. O Newcastle também foi o adversário do City na final da FA Cup de 1955, quando Bert se tornou o primeiro alemão a disputá-la. Nessa, o City bateu na trave, perdendo de 3 a 1, mesmo sendo favorito.
Você já viu essa história, não é, torcedor do City? Se não tiver emoção, não é City. Nas palavras do próprio Trautmann:
Em 1955 nós éramos favoritos para bater o Newcastle. Mas, como frequentemente acontece, os favoritos perdem em Wembley.
Chegamos à histórica final de 1956
Mas, antes, vale à pena contar sobre as semifinais. O City enfrentou o Tottenham, time londrino, em uma partida marcada por um lance envolvendo o goleiro. O time de Manchester vencia por 1 a 0 quando, no último minuto, os Spurs tinham seu último ataque.
No lance, Trautmann enroscou seu braço direito na perna direita do atacante adversário, num lance polêmico que poderia ter sido pênalti e forçado a partida a ir para a prorrogação.
O árbitro não marcou e o jogo terminou com placar de 1 a 0. Após a partida, Bert foi criticado ferozmente e chegou a receber ameaças de morte, especialmente de um torcedor dos Spurs, que lhe escreveu uma carta dizendo que ficaria atrás do gol, com uma arma, na final da copa. Quando entrou em campo em Wembley, dois meses depois, para disputar a final diante de um incrível público de 100 mil espectadores, Bert não sabia se o homem que o tinha ameaçado de morte estava lá.
A despeito disso, Trautmann não imaginava o quão perto realmente estaria de perder sua vida naquele dia 15 de maio de 1956. O City dominou o jogo e ganhava por 3 a 1 do Birmingham quando, a 17 minutos do fim da partida, um dos maiores incidentes da história de Wembley aconteceu.
Após um cruzamento na área, Bert se atirou aos pés de Murphy para disputar a bola, chocando-se com o atacante, cujo joelho direito bateu fortemente contra o pescoço de Bert, que caiu severamente machucado. Como as substituições não eram permitidas, o capitão, Roy Paul, sugeriu que Roy Little assumisse a meta.
Incrivelmente, o goleiro, ainda confuso e tonto, insistiu em continuar jogando, ainda sem saber que havia quebrado o pescoço. De fato, depois se constatou que, por uma questão de milímetros, Trautmann não ficou paralisado ou até mesmo morreu em campo.
Eu joguei com minha visão turva, cinza, eu não percebia nada, não enxergava os jogadores, nada…
Ele não apenas seguiu jogando com as dores, como ainda salvou o time mais uma vez, ao disputar outra dividida, se jogando contra o adversário para fazer a defesa.
O jogo terminou e o City foi campeão da FA Cup pela terceira vez. Bert ainda estava tonto quando recebeu a medalha. O ex paraquedista alemão, agora, era o campeão do povo.
Para tornar a história toda ainda mais inacreditável, ele desfilou com os companheiros pelas ruas de Manchester, exibindo o troféu e ainda discursou para o público. Tudo isso apenas reclamando das dores que insistiam em continuar.
Só depois, ao passar por um raio-x, é que soube da lesão: cinco vértebras deslocadas e uma quebrada. Teve que usar um molde que ia do pescoço à cintura e deparou-se com a possibilidade de nunca mais voltar a jogar futebol.
Mas ele voltou a jogar antes do tempo recomendado os médicos. E voltou ainda melhor que antes.

Em 1956, Bert foi o primeiro goleiro da história a receber o prêmio de futebolista do ano, na Inglaterra, pela FWA (Football Writters Association).
Seguiu atuando pelo City até pendurar as chuteiras, em 1964.
Posteriormente, dedicou-se a ser treinador de futebol, tendo dirigido equipes pequenas na Alemanha e a seleção da Birmânia nos jogos olímpicos de 1972, em Munique.
Criou o Bert Trautmann Foundation, com a finalidade de nortear as relações anglo-americanas, no futebol.
Em 2005, recebeu da Rainha Elizabeth II a nomeação de membro honorário da Ordem do Império Britânico, por seus trabalhos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, já havia sido condecorado com a Cruz de Ferro, maior honraria militar alemã, exclusiva para tempos de guerra.
No dia 14 de março de 2019, foi lançado o filme The Keeper, sobre a história de Bert Trautmann.
O filme, com ares de romance, fala desde os dias de Trautmann no exército alemão à sua ascensão rumo ao Manchester City.
A história de amor que construiu com Margaret Friar, filha do dono do primeiro clube que o acolheu na Inglaterra, dita o tom da produção.

O filme foi dirigido pelo diretor Marcus H. Rosenmüller, que passou um bom tempo entrevistando Trautmann e seus familiares. Já o protagonista será o ator alemão David Kross. Veja algumas cenas do filme.
Bert nos deixou em 2013, aos 89 anos, mas sua bravura e os feitos de sua mítica história jamais serão esquecidos por nenhum torcedor do Manchester City.